terça-feira, 17 de maio de 2016

Como Falar Como Diversas Vezes

Como um ponto junto a tantos outros pontos de um céu estrelado, intermitentemente piscando, flertando com o perigo de um buraco negro qualquer. Como um sussurro poético ao pé do ouvido. Como calda de caramelo e suspiros queimados. Como ranger os dentes. Como afeições descabidas. Tal como medo de crônicas de duplo-bloco. Como esse apanhado de frases imperfeitas. Ou como no silêncio dos amantes ao fim de uma noite de amor literário, como nos livros de Allende, como nos versos de Cortázar, como nos goles de Fernet. Como "Things Behind The Sun", como nos filmes de Jarmusch. Como a carne que se faz aproximar, como o calor que sua, como a pele que arrepia, como as mãos que se esparramam, como os lábios que se alinham, como as línguas que se contorcem e como os vinte e nove músculos que anatomicamente se adaptam ao evento que sucede estes dois pontos: o beijo.

quarta-feira, 9 de março de 2016

O Perfume das Cores

Ou (O Envelope).

O suor escorre pelo corpo, tenso e concentrado. Há pelo menos duas horas ele procura finalizar, de maneira épica, seu último escrito. Uma demonstração de carinho em forma de palavras, frases e parágrafos. Nada muito incomum à rotina de um escritor. O cinzeiro abarrotado de bitucas é cúmplice de tamanho emprego energético. Dá-se pouca importância para o ato de escrever. Para muitos, pode parecer algo tão simples como lavar uma pilha de louças. Não, não é.

O suor escorre pelo corpo, tenso e concentrado. Dentro de alguns instantes ela entrará em cena. Depois de anos e anos de dedicação, seu momento finalmente chegou. Protagonista de uma peça prestes a entrar em cartaz, ela ensaia pela centésima vez seus movimentos, repassa fala por fala em sua cabeça. Geniosa, procura guardar cada deixa e cada marcação feita com fita crepe no tablado. Parece pouco complicado, decorar falas e sair por aí gesticulando. Não é.

Mesmo convivendo com elogios diversos e contundentes sobre seu trabalho, o garoto em questão não faz questão nenhuma de holofotes. Pensa que isso é coisa para aqueles que realmente sabem conduzir a língua e tirar uma porção de letras para flutuar, na brisa leve de um conto ou de um poema. Seu negócio mesmo é lidar com aleatoriedades, observações corriqueiras do mundo que o cerca. Simplicidade, verdade e publicações sempre ocasionais. 

Mesmo convivendo com diversas personas, umas assim, outras assado, a garota em questão não faz questão de levar nenhuma delas para casa. Ela sabe diferenciar a profissão da realidade e não se faz passar por alguém que realmente não é. Sua vocação não passa por mera encenação. Seu coração, que mal cabe dentro do peito, a desafia para uma atuação irretocável não somente nos palcos ou defronte às câmeras. Enquanto os outros somente ensaiam, ela vive.

Ele aqui, perambulando pela cidade das ruas mal iluminadas. Ela lá, em qualquer lugar da vasta metrópole. Separados por infindáveis quilômetros, vivendo em paralelo. Felizes à sua maneira, confabulam sonhos, amor e intenções que poderiam deixar o leitor de queixo caído. Inalcançáveis? Inseparáveis! Suas palavras engolem a madrugada, devoram a mesmice do dia-a-dia e perseveram, desde a simples postagem, ao carimbo do carteiro. Como Anton e Olga, ou como tantos outros por aí...

- Assine aqui, por favor.

-Onde?

- Aqui, abaixo do seu nome.

- Hum, ok! Obrigado.

- Obrigado! Tenha um bom dia.

- Terei meu querido! Terei!

terça-feira, 8 de março de 2016

A Melhor das Hipóteses

Como interpretar o vazio, quando a voz que vocifera, se faz tão pouco compreensível? São apenas ruídos, mas a mente, em desalinho, voa para muito longe de onde estava há poucos instantes. Os batimentos brincam de acelerar o ritmo, compasso carnavalesco dentro do peito e aquela sensação estranha de sempre. É inevitável procurar significados e soluções de curto prazo para disfarçar o estrondo. Dois tragos de uma legítima paratiense para o garoto, por favor. Não o suficiente para fazê-lo cambalear pelas pedras do centro, que fique claro. Somente dois tragos, para fazê-lo acalmar o coração, corar as bochechas e na melhor das hipóteses, encontrar no meio desta multidão de estranhos, um rosto conhecido. Ou não.

Assim, como os melhores contos estão em livros ainda não lidos, seu projeto de musa pode estar justamente ao seu redor. Como aquela à esquerda, sorrindo com as amigas, correndo contra o tempo, para quem sabe, não ter de dormir sozinha pela vigésima-sexta vez no mês. Ou aquela, de vestidinho verde mostrando os joelhos, com o cinto acima da altura da cintura, tentando disfarçar as largas ancas. Há um quê de enigmático em cada uma delas. E um tanto de surpreendente, se houver um mínimo de paciência para fazer uma leitura aprofundada. Mas a noite é uma criança, uma criança morrendo de sono, querendo ir logo se aconchegar num cantinho serenado, e priva a maioria de seus atores de tal capacidade especulativa. Ou não.

Se houvesse mais espaço, certamente haveria mais gente. Mas o local não fora planejado para o devido fim. Um corredor abafado, pouca luz e uma distância desafiadora de qualquer lugar até o balcão do bar. Trilha sonora que remete aos tambores de Timbuktu, como numa daquelas festas de evocação e magia. Mais dois tragos para o garoto. Somente mais dois tragos, para fazê-lo não pensar em se preocupar com seus próximos passos, mesmo que tais passos sejam dados entre solavancos e tropeços. Cuidado para não comprimir o pé dela. Tarde demais. O estrago já foi feito. Seu pé, o pé dela e o chão. Fisicamente falando, não há como calcular, devido ao tom de embriaguez, a força resultante de tamanho descuido. Ou não.

Vestido azul comprido, sandália vermelha e uma coroa de flores rodeando seus cabelos, escuros como a véspera da manhã. Quem diria. Sorrindo um sorriso capaz de paralisar até pilantra em rota de fuga, fugindo da mulher ou da polícia. E eu sei, ele poderia ir preso por um sorriso desses. Meu garoto, como é fácil perceber suas intenções. Chega de paratiense por hoje. É preciso ter calma, é preciso ter calma. Qualquer atitude impulsiva poderá fazê-la esconder os dentes. Mas ela não os esconde. Metade dos homens olham atentamente para a cena de cinema que se desenrola em frente à porta do banheiro. Ela é areia demais para esse caminhãozinho. Ela é um avião de grande porte, ele, uma pistazinha de pouso clandestina. Ou não.

Não tenha medo. O máximo que pode lhe acontecer é voltar ao seu estado anterior. Às mazelas de sua alma solitária. Levando em conta o tom proposital do tropeço, nada mais justo que pedir desculpas e oferecer uma cerveja ou um cigarro. Pelo menos sorria de volta, por Deus! Faça qualquer coisa, só não a perca de vista! Com seus olhos penetrantes, ela parece não estar muito disposta a recusar qualquer investida e enfim, partem para uma dança. A bem da verdade, um abraço em movimento, quase um badalo. É o melhor que ele pode fazer, acompanhar seus movimentos, olhar ao redor, copiar, colar e tentar executar. Ela parece não ligar para tamanha falta de perícia. A sorte está a seu favor. Mantenha o sorriso e dance garoto. Apenas isso. Dancem.

sexta-feira, 4 de março de 2016

Scarlett Johansson

Ela abre a porta do quarto e entra devagar, para não fazer barulho. Fecha a porta e caminha em silêncio, ao redor da cama, tateando o armário de canto, a parede perpendicular, a janela semiaberta. A noite escura não permite observar a cena com muita nitidez, somente seu vulto e seu percurso, realizado com perfeição. Ela finalmente chega ao canto da cama, acende a luz da pequena luminária e se deita. Ao seu lado, um corpo estático. Ele dorme um sono profundo. Cansou-se, esbaforiu-se, gozou e apagou. Ela olha fixamente para o teto. Pega o celular, começa a escrever, desiste, o coloca em cima do criado mudo e, no que se inclina para apagar a luz, escuta um grunhido. Ele desperta. Completamente sonolento, mas enfim, desperto.

ELA
Foi mal, não queria te acordar.

ELE
De boa, quanto tempo eu dormi?

ELA
Uns quarenta minutos, uma hora.

ELE
Tá sem sono?

ELA
Tentei dormir um pouco, mas não rolou. Fiquei pensando naquilo que você me falou, sobre a Scarlett Johansson.

ELE
Quê que tem?

ELA
Não sei, acho que você me trocaria por ela sem pensar.

ELE
Provavelmente sim.

Ela começa a rir. Ele começa a rir. Então começam a se beijar. Ela monta sobre ele, segura seus braços e, delicadamente, mergulha sua língua em seu pescoço. Ele a ajuda a retirar a camisola, ou qualquer roupa de dormir feminina, ao qual o nome simplesmente desconhece. Ele gira seu corpo por cima do corpo dela e a agarra firmemente. Lá fora a chuva cai, torrencialmente. A luz da luminária pisca diversas vezes. Ambos não dão a menor atenção. Raios e trovões. Nada demais, perto do calor que se insinua. Ele desliza seu corpo até a altura da cintura dela e então começa a chupá-la, vigorosamente. Ela se contorce toda e procura se segurar na cama. Algum tempo depois, num salto quase circense, ele se levanta e a puxa, colocando-a de costas, ou melhor, de quatro. Penetração forte e constante, intercalada por alguns espaços de respiração contida e sexo lento.

ELA
Mais forte, mete mais forte!

Ele acelera. Ela gosta. Ambos estão prestes a gozar novamente. Ele acelera ainda mais. Ela emite ruídos. Um misto de gemidos e bufadas, enquanto morde o travesseiro. Ele passa a respirar de maneira ofegante. Ela percebe o andar da carruagem. Logo os dois passam a respirar de maneira intensa. Ela goza. Ele goza. Esgotados, deitam um do lado do outro. A chuva continua, agora, sem muito estardalhaço. É possível ouvir cada gota quicando no telhado. Ela acende um cigarro.

ELA
Scarlett Johansson. De agora em diante, eu me chamo Scarlett Johansson.

ELE
É pra te chamar assim?

ELA
Ué, você não gosta? Ela tem aquela carinha de puta...

ELE
Foi só um filme! Tá com ciúmes?

ELA
Nem um pouco, ciúmes eu tenho é da vizinha. Tu acha mesmo que eu não sei que você come a boceta dela quando eu passo uns dias sem vir aqui?

Ela apaga o cigarro e apaga a luz. Ele senta na beirada cama. É impossível prever seus próximos passos. Por enquanto, apenas observa a noite pela janela do quarto. Se fosse possível ler seus pensamentos, arriscaria um palpite! Não, nada de vizinha. Muito menos dessa, que agora repousa do lado direito da cama. Scarlett, Scarlett...

quarta-feira, 2 de março de 2016

Monólogo Contundente

Hoje eu descobri que sou bom. Sou bom, inclusive, para descobrir coisas e me situar no calendário. Hoje, somente hoje, fui me dar conta disso. Constatei o básico do ser humano em mim mesmo. Eu sou bom. E sou muito bom em diversos aspectos importantes para saber se manter e sobreviver a esse mundo que tanto me constrange. Parei, pensei, retomei o fôlego e cheguei à conclusão de que não preciso de absolutamente nada. Tenho tudo. Se simplicidade valesse grana, eu estaria hoje, mais rico do que nunca. Pois hoje eu descobri que sou bom. Descobri que sou simplesmente demais. Resolvi acordar para a vida e percebi tamanha coisa incrível dentro de mim mesmo.

Daí então você, sentado nesse sofá confortabilíssimo, me perguntará: mas quê coisa é essa meu amigo? Você é bom fazendo o quê?

E eu responderei assim: sou bom fazendo simplesmente aquilo que eu necessito fazer, nada demais, errou se pensou que eu fosse dizer que sou bom de cama, bom pagador, bom amigo, bom filho, bom marido, bom pastor, bom sucesso, bom dia, bombom, bon jour, bom vivant (afrancesando o diálogo), bom pescador, bom samaritano, bom retiro, bombay bicicle club, bombástico, bomba relógio, bomba atômica, bomba nuclear, bomba de fumaça, de chocolate ou de embalar à vácuo. Nada disso meu amigo. Você pensou e errou, completamente.

Daí então você, sentada nessa cadeira de escritório giratória, me perguntará: mas que coisa toda é essa, meu amor? Bom de que jeito?

E eu responderei assim: sou bom demais da conta. Sou bom para mais de metro! Tudo certo, tudo certo. Vou contar para você que sou fodamente bom, bom além da conta, par alugar os seus ouvidos por mais de cinco minutos e não dizer absolutamente nada. Pois é assim que eu me sinto em relação a esse texto agora. Pois é assim que eu me sinto em relação à minha vida agora. Pois é assim que eu me sinto em relação ao meu posicionamento político agora. Pois é assim que eu me sinto...

Bom demais para escrever palavras ao acaso da mente, ao acaso das teclas, que persistentemente me trouxeram até aqui. E agora, para onde ir? Bom... (melhor nem pensar).

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Detlef Schrempf

Nada como um domingo em São Paulo. Curtir a noite de sábado como se não houvesse possibilidade de haver um outro sábado na vida e dormir, pra depois acordar tarde, abrir a janela e perceber que a cidade partilha da mesma ressaca, com aquela cara cinza chuvosa. Além de muito me fazer refletir sobre diversas coisas, tal quadro faz parte do repertório paulistano e não pode ser tratado com um tom desesperador. Deixa o cinza tingir o azul do céu de outrora. Deixa a chuva molhar as calçadas e ruas e telhados das casas. Tem muito de preguiça num dia como esse. É desafiador pensar em dar saltos grandiosos quando tudo o que se quer é acender um cigarro e observar a melancolia da cidade a passos lentos.

Meu nome é Vicente Kresiak Canato e eu não sei exatamente onde quero chegar com isso aqui. Talvez do outro lado da rua. Talvez do outro lado da cidade. Quem sabe, do outro lado de uma autoestrada qualquer. Bem provável que na porta da sua casa. Aquela casa grande, de muros baixos e pintados de terracota. Com aquele cachorro imenso e estabanado esperando no portão. Na terra do sol fustigante, quarenta graus de amor e ódio. Talvez não. Com certeza não. A casa da qual me refiro agora é outra. E pode ser uma, dentre tantas. Em bairros nobres ou não. Longe ou perto da minha atual localização. Tudo em aberto nesse meu coração.

Meu lugar é impreciso. Dichavo um tanto de tabaco, enrolo na palha e amarro com um micro pedaço de linha preta. A arte de fazer o próprio cigarro me aproxima de maneira muito eficiente e peculiar das condições mais rústicas do ser humano. Agora sou eu, meu palheiro e os faróis verdes, amarelos e vermelhos da sinaleira da esquina, que dita o ritmo daqueles que não se arriscam à sorte das pequenas e incontáveis gotas que escorregam lá de cima. Sinto algumas delas molharem meu cabelo e meu rosto. Não desanimo, não há sequer um bom motivo para desanimar. A cidade é grande, mas é só uma cidade. Um punhado de gente, de carros, de prédios e de avisos para não fumar em locais fechados.

Cada centavo conta. Procuro pelas moedas e notas amassadas que sobraram no fundo dos bolsos, mas agora é tarde. Já desci do trem, já passei pela catraca, não há como voltar atrás. Tarde, tarde demais. Eu bem sabia que deveria ter verificado cada centavo antes de atravessar essa linha inteira. Antes de descer do trem. Antes de passar a catraca. Me faltam noventa centavos para completar o bilhete. Noventa centavos milionários, para retornar à boa e velha casa de onde há pouco saí. Melhor não esquentar. Não sei se cheguei onde queria chegar, nem se saberei quando e como voltar. Tudo bem. Meu aparelho de som portátil indica uma trilha nova e interessante de um disco qualquer do Band Of Horses, um grupo simpático de Seattle. Vou na deles. "The town is gonna talk, but these people do not".

Meu nome é Vicente Kresiak Canato, e tenho muito pouco para contar. Tanta gente ao meu redor, tantos outros possíveis Vicentes dividindo o mesmo metro quadrado. Tenho vontade de perguntar o que se passa na vida de cada um deles. Quais serão seus dilemas? Seus sonhos? Seus monstros? Quais serão suas alegrias? Seus bons motivos para sentir orgulho ou pena de si mesmos? Sinto um aperto no peito por não fazer o que tenho vontade. Às vezes me privo de dar uma rasteira nessas impossibilidades conceituais que me afastam de fazer o que realmente quero. Por quê? Não sei. Ontem ouvi, da mesma boca que me beijava, algo sobre tendências autoboicotáveis.

Como se o grande prazer da minha vida fosse dar rasteira em mim mesmo. Daí eu penso: domingo de chuva, sem um puto no bolso, do outro lado da linha do metrô que me levaria de volta para casa. Sabe a qual conclusão eu chego? Então...

O grande erro é acreditar que somos plenamente capazes de controlar nossas ambiguidades, restringindo assim nossas possibilidade de erros ou acertos. Viver é caminhar claro e escuro, cair, levantar e seguir adiante, independente da largura de cada passo que é dado. E por uma questão de saúde, é melhor eu apressar os meus. A caminhada será longa.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Ainda Sou O Mesmo

A pergunta que eu faço todo dia para mim mesmo é a seguinte: "quem foi que disse que eu tenho que ter certeza de tudo, do rumo ao prumo, quem foi que disse que eu preciso ter certeza alguma?". Quando eu era bem moleque, e quando digo bem, e quando digo moleque, isso lá pelos dez anos de idade, a única coisa que fazia sentido na minha vida era o fato de que eu realmente não sabia o que significava a palavra "sentido" e muito menos do que se tratava a palavra "fato". Eu era apenas uma criança de dez anos e tudo o que queria era ver o tempo passar enquanto esperava minha mãe me buscar na escola e o tempo parar enquanto brincava com meus amigos.

Não pensava em nada que não fosse algo do tipo. Não havia complexidade, não havia ainda a ideia de que alguém poderia vir a me fitar como um pedaço de carne pronto para o abate, como um ser à deriva, ou como uma pessoa qualquer que faz parte desse mundo tão pitoresco. Éramos apenas crianças e se pudéssemos somar nossas idades, não passaríamos dos quarenta. Caso contrário, saberíamos desde muito cedo todas essas coisas sobre a dureza de ser gente grande.

Mas não, o negócio era chutar possas, sujar as roupas e andar pelas ruas como se não houvesse amanhã. E sinceramente, certamente não havia. O amanhã, clichê de cada novo dia, é coisa pra se pensar a partir da adolescência. E como qualquer punhado de seres ínfimos, guardávamos nossas possíveis preocupações e angústias em pequenas caixinhas de segredos, bem lá no fundo daquela enorme gaveta onde circulam nossos pensamentos. Não havia certeza alguma. Não havia necessidade de certeza alguma. Havia bolo. E se houvesse bolo, havia tudo.

Posso parecer um tanto ingênuo. Um tanto bobo. E isso me incomoda muito menos do que outras certas coisas que eu poderia pensar de mim mesmo. Ou que penso. Às vezes sinto que o tempo se estende por ciclos diversos e que a cada ciclo, uma nova pessoa, dentre as tantas que sou, toma as rédeas e dita o ritmo, até que da noite para o dia, tudo muda e nada do que foi será - parafraseando Lulu - de novo, do jeito que já foi um dia. Não há qualquer sinal de bipolaridade, tripolaridade ou tetrapolaridade. Chamam isso de múltiplas personalidades. Vejo mais como um dia após o outro. Como o jeito natural de ser e se adaptar a tudo e a todos.

Não dá para passar a vida inteira fazendo tudo da mesmíssima forma, diariamente, eternamente. Há dias que a rotina escapa das mãos e prevalece aquela sensação de que o mundo é mesmo muito grande. Dias em que a rotina não escapa e então, nada acontece. Posso parecer um pouco perdido quando falo sobre certas coisas, mas é bom que seja assim, me sinto bem dizendo aquilo que me vêm à mente. Aquela ideia que supera todas as outras. Aquele lapso vencedor, que passou por cima de todos os outros e pronto. Aquela fagulha que brilhou mais intensa. Posso parecer certo de tudo. E não saber nada de porcaria nenhuma.

Certo somente de que tudo e nada separam-se por uma linha muito tênue. Ainda sou o mesmo. Por mais que o corte de cabelo seja outro, por mais que o tom da pele e da voz também tenham mudado. Por mais que as ideias tenham flutuado por diversos e distantes mares, por mais que o brilho dos olhos tenha deixado rastros por inúmeros flertes. Por mais que o corpo apresente marcas que evidenciam feridas que talvez jamais venham a cicatrizar. O mesmo ser aventureiro e questionador incansável de tudo sobre qualquer coisa que seja. Cansado da vida e distante demais da morte. Ainda sou o mesmo. Caçando sorrisos nas ruas, brincando com a sorte. O mesmo, exatamente o mesmo. Não há dúvidas, cheiro de criança, aroma de menino, perfume infalível de homem. E como o tempo voa...

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Isso Que Escrevi Para Você, Mas Que Na Verdade Gostaria de Dizer Pessoalmente

Não que me cause espanto, longe disso! O que posso dizer é algo que estampo em minha face desde o momento em que percebi estar - de fato - vivendo junto a ti. Amor claro e forte. Desequilibrado, mas na medida certa. Amor gratuito, amor inclusive aos defeitos, às intempéries, aos desencontros. Questão de surpresa, muito mais surpresa, que propriamente espanto. Questão de sentir o peito bater e não ter como controlar (a gente nunca controla, mas, enfim, você entendeu o que eu quis dizer).

Nem de longe eu poderia imaginar que estaria escrevendo isso aqui agora. Nem de longe eu poderia imaginar estar usando essa samba canção ridícula que estou usando agora. Mas estou. E sinceramente, que bom que estou escrevendo para você, com essa samba canção, nesse exato segundo. Nesse cantinho qualquer de mundo, sob a pouca luz que me é característica. Sim. Me sinto feliz fazendo algo que tanto gosto, por alguém que tanto gosto. É isso, é bom e não demanda muita explicação.

Um texto que começa com um "não" tende a ser uma catástrofe. É que eu pensei ter esquecido como falar de amor. Pensei ter encostado num canto qualquer do quarto, essa palavrinha tão útil, esse sentimento tão grande, mas não, não mesmo. O amor está mais vivo do que nunca, está mais afim do que nunca e mais afiado do que nunca. Meu coração tá babando, e eu, me esforçando para não escorregar. Amor é bom, mas amor contundido é uma lástima e eu não quero perder um segundo da nossa vida amarrado à uma porção de gesso.

Escrevo porque não posso dizer tudo o que quero ao pé do teu ouvido. O que de certa forma é bom, porque tem hora e lugar para tudo o que pode ser dito. Ao pé do ouvido, prometo dizer coisas impossíveis de se publicar aqui. Sobram as que não são impublicáveis. E eu espero que sejam suficientes, para você - ao menos - compreender o tamanho do carinho e da saudade que carrego aqui dentro.

Agradeço pelo tempo despendido nessa leitura. Pelos dias bons. Pelos dias não muito bons. E como forma de gratidão antecipada, pelos dias que virão. Detalhes tão pequenos de nós dois... numa página de blog. Viva o amor e a modernidade, meu bem. Que a manhã de amanhã te receba com essa tentativa de texto bonito e inesperado. Aguardo fortemente o teu retorno e finalizo com um clichê dos desaproximados: volta logo!

domingo, 28 de junho de 2015

Um Breve Retorno

Perante a iminente falta de possíveis ouvintes, tudo o que me resta é papel. É sempre papel. Papel, caneta e minha cabeça alucinada. Porque não basta só estar desperto, os pensamentos todos precisam se fazer notados. E como lateja, quase a ponto de abrirem um buraco na testa e saltarem para o nada. O que não sai pela boca, escorrega até a ponta dos dedos. E então a mão balança... e dança sem precisar de música. 

Um breve retorno. Para não esquecer de que jamais me esqueci. Tanto disso quanto daquilo e de como, por mais que eu tente mentir para mim mesmo o tempo todo, escrever é mais que rabiscar uma página em branco. Obrigado pelas palavras que jamais seriam ditas. Um novo sopro pede licença. Tudo no seu devido tempo. Ainda preciso me acostumar... Ainda preciso me acostumar...


segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Carta Aberta Para Um Coração Partido

Sim, definitivamente sim. Sim para tudo e para todos. Nem sempre somos capazes de aproveitar a possibilidade de dizer essa palavrinha mágica, mas deveríamos, sempre que tivermos uma oportunidade. Sim meu amor, definitivamente sim.

Sim, que você jamais desfrute de um raciocínio contrário. Sim, você estará certa ao pensar que as palavras que virão são algo muito maior que simples necessidades de um relacionamento sério. Sim, a toalha de renda na mesa é uma maravilha! Sim, o ventilador ajuda muito nas noites de muito calor. Sim, a escova de dente azul me deixa muito seguro em relação à frequência de vezes em que me esqueço da necessaire.

Sim, definitivamente sim. Sim às bitucas de cigarro e às ressacas de amor e ódio. Sim aos dias azuis e sim aos dias cinzentos. Sim à comida sem sal e ao queijo gorgonzola. Sim ao pastel de papas! Sim às garrafinhas de água, sim às almofadinhas coloridas esparramadas à beira da cama. Sim para todas as calcinhas penduradas no box. Sim, para a cortina de peixinhos do box. Sim, ao box, como um todo.

Sim aos pernilongos, sim aos malditos pernilongos! Sim, definitivamente sim. Sim à loratadina, neosoro e a vida como ela é. Sim à loucura de viver, simplesmente. Sim ao dormir, sim ao despertar. Sim a cada palavra sussurrada no ouvido. Sim a cada centímetro de pele que arrepia ao deslizar dos dedos. Sim ao toque. Sim ao toque pleno. Sim, meu amor, dos cabelos às pontas dos pés.

Sim, definitivamente sim, à rouquidão de Joaquín Sabina e aos escritos, de Orwell até Pondé. Sim aos moleskines, às canetas de pontas finas, aos devaneios sempre ininterruptos. Sim. Ininterruptos, graças ao nosso bom Deus. Sim, aos filmes de amor, às músicas de amor, aos poemas de amor e a todos os post-its-mensagens-de-amor-matinais que eu puder contemplar nas manhãs de sábado, ou domingo.
 
Sim, definitivamente sim. Sim ao amor verdadeiro, aos beijos na boca, ao sexo praticado em perfeita sintonia. Sim aos olhares, às sensações, aos pequenos detalhes. Sim aos telefonemas, às esperas, aos passeios de mãos dadas pelas madrugadas. Sim aos dias sem mãos dadas, sim à distância e sim à saudade, que aperta, não mata e fortalece.

Sim, definitivamente sim. Sim às lágrimas decorrentes das confusões do dia a dia. Sim à sinceridade de sermos quem somos. Sim às diferenças, de crença, cultura e posicionamentos políticos. Sim ao amor sem fronteiras.  Sim à garrafa de Fernet, aos sorrisos, aos banhos de chuva. Sim ao reconhecimento, de ser você quem é, e dentro de mim, ser alguém tão forte e irretocável. Sim. Essencial.

Sim ao tempo dispendido a preencher cada linha desse documento em branco. Sim, está ficando tarde. Sim, amanhã preciso começar o dia cedo. Sim, já deveria estar roncando há muito tempo. Mas... não.

Não estou nem aí! Estou é pouco me fodendo ou preocupado com isso. Sim, à casa do caralho e às predisposições amorosas ao invés do sono!

Boa noite meu amor.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Contextual

Tenho pouquíssimas coisas para dizer. Nada de relevante ou incrível. Minhas palavras comem o silêncio vagarosamente, apetite forte, sou um rapaz de frases perdidas que cismam, não sei muito bem porquê, ir atrás do teu ouvido. Necessidade pura e petulante.

Ela guarda em si todas as intempéries possíveis, as dores do mundo, o grito que rompe a noite, as horas desperdiçadas junto ao caos das pequenas grandes coisas do dia a dia. Ela fala em situações intensas, terríveis sinais de ser quem é. Terríveis sinais de ser...

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Sobre Desencontros

Eu perco horas, perco dias, perco semanas e meses inteiros. Eu perco anos da minha vida, perco todas as oportunidades que batem à minha porta. Eu perco tempo, perco a hora, perco as datas de todos os aniversários. Perco as chaves, perco a cabeça, perco o caminho de casa. Perco a vez, perco os sentidos. Perco o controle, o chão e o freio. Perco a fome, o sono, perco as estribeiras.

Eu perco a fé, perco peso, perco os fios do cabelo. Perco a inocência, perco a milésima caneta. Perco o guarda-chuva, perco o medo, perco o fio da meada. Perco a paciência. Eu perco o jogo, perco feio, e perco também o senso de realidade. Perco o show do Noel Gallagher. Perco as forças, perco as esperanças. Perco o juízo, perco a conta. Perco o ônibus, perco o emprego. Inclusive, eu perco até o isqueiro...

Mas você eu não perco. 

Em você eu me perco. E isso soa mais que suficiente.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Quando Bate, Bate

Tem coisas que nem o velho psicanalha poderia explicar, não é mesmo? Mas, a bem da verdade, tentar não custa nada. Então, Freud, explica para mim, vou tentar arrancar de você apenas essa ínfima reflexão, explica Freud, por quê o amor é tão bonito e tão filho da puta ao mesmo tempo? Freud, seu bom e velho sacana, explica para mim, por quê o amor é assim?

Eu nunca entendo como as coisas são, se são da forma que deveriam ser, se são e somente são ou se não são nada além daquilo que poderiam ter sido, daquilo que são, ou serão, quem sabe um dia. Explica Freud. Começando por esse parágrafo. Vamos lá! Fala comigo seu psicalado, muito quieto para o meu gosto!

Por quê diabos a gente sente os pêlos do corpo arrepiarem do calcanhar até o pescoço? Explica o por quê da falta, quando tudo parece tão cheio; será apenas outro dentre tantos outros devaneios? Nada como um bom papo com o grande psicaolho que não enxerga mais do que um palmo à sua frente. Eu simplesmente esperava muito mais de você, querido Freud. 

Explica para mim, quem é que determina quando, onde e por quê duas pessoas devem se encontrar, acima do céu ou abaixo das estrelas, no meio de um caminho para qualquer lugar, ao fim de uma noite de virada, quando tudo o que se espera é finalmente dar início ao calendário guardado atrás da porta? Freud, Freud, psicansado de ouvir minhas críticas e minhas dúvidas sobre o amor nosso de todos os dias. 

Entendo. Penso eu ser um ser incompreensível demais para as suas psicanálises cotidianas? Não, talvez seja simples ao extremo para o seu repertório, diz aí, psicamarada, amigo da onça! Não, não. O amor não pode ser somente um intervalo que separa o último dia do ano e o primeiro risco no mês de janeiro. Coração é porta entreaberta e amor é malandro, quando bate, bate, mas quando quer não bate, entra mesmo sem convite e se esparrama pelo sofá da sala. 

E por falar em sofá... não precisa mais querer tentar me explicar. Amor é de tudo um pouco e de muito pouco dele se compreende.

Francamente... Ok. Quanto eu lhe devo?



sexta-feira, 25 de julho de 2014

Sobre Estrelas Perdidas

Doces são as noites. Reservam os sonhos mais belos do mundo, enquanto o sono tranquilo e profundo, inebriam a mente cansada daqueles que, como eu, tendem a passar os dias pensando sem pensar, agindo sem agir, de modo a querer sem saber como, quando, ou o quê, de modo a desejar, simplesmente.

Doce é o sorriso da menina linda e distante, miragem insólita e maravilhosa, que avisto de onde permaneço, quieto e calmo, com meu cigarro por enrolar, barba por barbear e sempre certo, de que estou no melhor lugar, aquele, onde permaneço. Onde não confundo os tais sonhos mais belos do mundo, e sim, os vivencio em plenitude, lugar perfeito, morada do futuro imenso e da manhã que se mostra de repente. 

Surpreendentemente, a noite.

À deriva flutuam seus braços, pés e pernas, seu cabelo escuro e sua solidão, que não me dói. Perdida em uma noite como qualquer outra, mas infinitamente diferente das noites comuns, passeia com suas mãos pela água e sorri de encontro a mim, ilha deserta. Mostra os dentes, mostra um coração enorme, mostra por entre as frestas de sua existência, toda a beleza necessária para fazer brilhar a mesma noite que a devora. E como devora, lentamente, véu de tudo que possa vir a ser. 

A noite é uma porta por se abrir, com maçaneta e tudo. Uma porta por se abrir junto às dores do mundo. Pois o mundo não é feito somente dos mais belos sonhos. O mundo é um caminho absolutamente inédito à frente. É um salto, junto ao infinito das coisas. Mesmo que pequenas coisas. Como a minha mesa repleta de migalhas de tabaco, como meus olhos vertendo em lágrimas, como aquela música linda das estrelas perdidas. A beleza da vida é também encontrar-se, mesmo que à deriva.

Há quem diga que não exista saída. Há também aqueles que preferem acreditar que para todo e qualquer corpo flutuante, distante, como manda o figurino, existe uma maré cheia, um balanço de ondas e uma beira de praia. Existe sempre um lugar para se chegar. Um lugar, onde podemos nos encontrar.

Eu, você, o cigarro já enrolado e a barba por fazer - graças ao meu péssimo dom para a lâmina - e ela. 

A noite. O luar. O começo de tudo e o fim do começo.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Eu Escreveria Um Livro Sobre Isso

Tenho medo do que posso vir a escrever nas linhas que estão por vir. Medo mesmo, pavor, das possíveis palavras que poderão vir a brotar dessa página em branco. Tenho medo do branco. Para falar a verdade, morro de medo de páginas em branco. É como desfrutar de um salto no vazio absoluto. Tenho medo do vazio. E do absoluto também. Mas acima de tudo, medo de preenchê-las com qualquer coisa. 

Ok. Melhor parar por aqui. Não, go on!

Como se vê, medroso. Com um puta medo de que um dia as estrelas se apaguem, medo de engolir água pelo nariz. Medo de ser triste. Ou feliz, em demasia. Medo de sexo tântrico, medo de unhas encravadas. Um puta medo, não medo de putas. As putas ainda não me deram motivos para sentir medo. Mas sim, medo de pole dance. Medo de quem faz o tal do pole dance. Medo de quem faz o pole dance e depois compra novalgina na farmácia. Medo de pessoas normais demais.

Medo de ir no mercado de manhã. Medo de mamilos grandes. Medo de altura e de fogões com acendedores de bocas automáticos. Medo de flores coloridas demais, medo de dias cinzas e noites úmidas. Pavor, de calcinhas penduradas no box. Medo de quem as penduram. Nada contra pendurar calcinhas em todos os cantos possíveis. O medo é de dar de cara com elas sem aviso prévio ou preparo psicológico.

Medo de refrigerantes dietéticos, medo de estereótipos. Medo de pessoas que falam essa palavra e nem sequer fazem ideia do seu real significado. Medo de rodovias interestaduais. Medo de filiais do capeta e inferninhos da vida. Medo de açúcar impalpável. Medo não, pavor, de açúcar impalpável e caramelo. Medo, medo, medo de caramelo.

Medo da Barbra Streisand, e das músicas da Barbra Streisand. Muito medo por ela não se chamar Bárbara. Seria muito mais simples se ela fosse uma Bárbara Streisand. Mas não, ela é Streisand. E eu tenho um medo bem sincero em relação a isso. Medo de propaganda eleitoral gratuita, medo de propaganda eleitoral no geral. Medo total de impulsos persuasivos. Medo de pastores alemães.

Medo de estar indo longe demais com isso. Medo de não fazer qualquer sentido. Medo de aliviar a barra da página vazia. Do branco e do vácuo. Medo danado dessa turma. Medo por terem voltado para me aterrorizar justo no último parágrafo. Medo de que este seja, de fato, o último parágrafo. Medo de parar de escrever.

De uma vez por todas. O medo é psicológico. E eu cago de medo de terapia.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

O Beijo

O garoto com as mãos cobertas de tinta fresca estava ali, compenetrado, com seus olhos de garoto mirrado, observando sem muito saber. Havia de estar cobrindo uma parede, ou alguma tela, com seus sonhos infantis e coloridos, mas acabou deixando tudo de lado para chegar um pouco mais perto.

O vendedor de doces estava ali, com sua carrocinha repleta de delícias e gostosuras, amparada por duas rodas de aros tortos e precariamente encaixados. Sem muita sofisticação, era apenas um vendedor de doces e sua carrocinha, ganhando a vida com muita dignidade e açúcar. Não julgo este pobre homem por lucrar diante de um punhado de outros seres absortos. A barriga ronca e o justo é o justo.

A senhora gorda, o lacaio descalço, a mocinha dos olhos fixos e firmes; eles também estavam ali. 

O advogado recém formado, suando bicas sob o escaldante sol do meio dia, trazendo uma porção de casos desgovernados em sua pasta, estava ali e negociava com o vendedor de doces um singelo desconto nos pedaços de bolo. Estava ali por acaso, prestes a iniciar o expediente, matando a fome junto à dignidade achocolatada.

Novamente, não procuro julgar de maneira alguma o vendedor de doces e sua carrocinha. É como vender guarda-chuvas ao cair das primeiras gotículas. Justo. Dá-se um jeito de fazer seu ganhapão adaptando-se ao contexto e isso é muito digno. Digno e justo.

O moço da banca de jornal, o fumante sentado, a criança inocente, junto de seus dois irmãozinhos e seus pais e talvez tios, a faxineira da vassoura de microgalhos de bambu, os dois entregadores de frutas e verduras da quitanda, os transeuntes desqualificados e sem qualquer referência, todos, de uma maneira lúdica ou não - para a imaginação do leitor - estavam exatamente ali.

Exatamente ali. Diante de nós.

Exatamente ali. Diante do beijo.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Zabriskie Point

Surto psicótico em Zabriskie Point
nem Bukowski, nem o bom Bukowski
seria capaz de compreender 
tamanha deselegância 

Um maço pela metade
porque o preço que se paga pelo vício 
é a preguiça impregnada 
e as bitucas;

Um filme de sacanagem tosco
com gemidos falsos, muito diferente 
de como aprendemos 
no jardim de infância

Tarde da noite em grande estilo;
Uma punheta psicodélica... para lavar a alma 
junto à fumaça...


sábado, 23 de novembro de 2013

O Que Falta Em Mim

Quando falta uma perna, complica-se o caminhar. Mas para isso existem as muletas, as bengalas, as próteses de última geração. Dificulta, mas não impossibilita. Limita e muito, mas não impede, por assim dizer, um possível passeio qualquer.

Quando falta um braço, complica-se o abraço. E aí é difícil. Como não poder entrelaçar-se com outro par de braços? A coisa tende pro lado do absurdo. Não, não deve ser fácil conviver com tal deficiência. Mas para isso existem os outros braços, que num lapso de amor infinito,  abraçam de qualquer maneira e fazem parecer nula a falta do membro em questão.

Quando a falta é fruto de uma dúvida "falta de quê?", complica-se o raciocínio lógico. Óbvio. Um buraco imenso, perdido em algum lugar do peito. Isso não é coisa boa. Não dá para jogar duas pás de areia e achar que tudo está devidamente preenchido. O vazio do peito é estranho. Sensação de perda sem perder, de não ter, mesmo que se tenha. O vazio no peito é um grande filho da puta, um grande inconseqüente.

E como resolver? O quê fazer? Como proceder? Talvez o vazio do peito seja apenas a falta de algo maravilhoso em mim. Nesse caso, você.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Estudo Repentino dos Estímulos (Inspirações) e Suas Possíveis (e Impossíveis) Consequências Para Um Projeto de Escritor em Crise Existencial

de onde vem? - Compreendendo o Incompreensível  - Primeira Parte

Aqui estou eu, novamente, prestes a escrever outro punhado de palavras aleatórias, pensando na possível dramaticidade das mesmas e nas questões que poderei - ou não - ensejar a quem vier a ler este mais que provável – além de estudo - desabafo noturno.

Creio que, ao menos uma vez na vida, todos já se depararam com o fator inspiração e suas inexatas proveniências. Afinal, de onde vem a chama? De onde surge tudo o que é criado? Será que todo ser criativo é somente criativo, ou será que todo ser criativo, além da alcunha, é abastecido de alguma fonte inesgotável e misteriosa, de ideias e devaneios irretocáveis? Não pode ser só o cigarro, o uísque e as noites mal dormidas!

Venho levantando, desde o último escrito publicado, algumas hipóteses que embasem, de alguma forma, a existência de uma força criativa superiora. Sim, eu acredito cada vez mais no poder das musas e em toda a sua influência no processo inventivo de quem parte do zero e tinge de cor a uma tela em branco.

Uma pessoa? Uma sensação? Um legado para as gerações futuras? Livre expressão? Ou apenas o desejo relativo ao reconhecimento? O que desencadeia as ações que levam alguém a criar algo? São inúmeras as questões, pontos e mais pontos de interrogação, espalhados ao redor de cada milímetro desenvolvido. Não me canso de buscar sentido para tudo o que agora escrevo, tendo em vista o fato de que, como disse anteriormente, tal escrito não passa de um punhado de palavras aleatórias.  

Minha investigação percorre todas as linhas lidas em jornais, livros, revistas e publicações virtuais. Porém, por mais inesperado que possa ser o que direi em sequência, me perturba a possibilidade de perder tempo buscando retorno em vias históricas. Percebam, talvez tais necessidades não sejam simplesmente compreensíveis, enquanto baseadas em relatos dos mais diversos e, o mais importante, já escritos. Minhas indagações tendem para aquilo que ainda não fora concebido. Talvez as tantas respostas que procuro residam em lapsos de futuras ações, perspectivas, e isso é para mim, um sinal muito claro de que, independente do quanto eu me force a entender mais e mais cada fagulha de criatividade, jamais será possível definir sua origem, detalhar sua fonte e, por mais óbvia que pareça, por mais interligada ao tema sugerido, nunca será possível traçar um paralelo e enfim, descortinar qualquer sentido.

Penduro na conta do amor, na conta das cinzas de cigarro acumuladas. Penduro na conta das noites em claro, na conta dos copos vazios. Sempre surge uma boa desculpa para um texto qualquer, uma boa dose de porquês e poréns para satisfazer as dúvidas alheias. 

O que me incomoda é não ter absoluta certeza, de que tudo isso só é possível graças à minha cabeça. Será que meus neurônios são tão sensíveis e poéticos assim? Não, não são. Nada é em vão, nem beira a beira do acaso. Se escrevo, acredito, que escrevo para alguém, mesmo que esse alguém não saiba da existência de meus versos e, além, mesmo que esse alguém não faça ideia de quem seja o seu eterno remetente. Escrevo, mesmo que esse alguém, simplesmente não exista.

E aí é que está uma das dúvidas mais frequentes. Como é possível destinar algo a alguém que não faz parte da minha vida? Como posso criar por criar? Como posso, eu, escrever um texto de amor para um coração desconhecido? De aleatórias já bastam as palavras. Não consigo, enfiar na minha cabeça essa ideia de escrita sujeita às incertezas do acaso. Escrita randômica? Como? Se a produção não é feita em larga escala (!?) Não vivo das teclas que bato. Não escrevo por grana. Não desenvolvo meu raciocínio para atender a um briefing ou uma encomenda. Não penso nessas tantas frases como simples forma de cumprimento a uma - indeterminada, para não dizer inexistente - demanda.

Parto sempre de um lampejo. Nem sempre muito claro, mas, às vezes incrivelmente óbvio e completo. Desejo; vontade nua e crua? Escrever, apenas?

e se o caso, dentre o acaso, for... ela? - Pensando Hipoteticamente - Segunda Parte

Era de se esperar que, em algum momento da minha vida, eu iria me deparar com alguma situação em que fosse possível reconhecer os meus estímulos, por assim dizer, em um par de olhos, em um nariz, em uma boca; em um rosto. Daí descende a ideia da musa inspiradora, aquela capaz de afrouxar as sendas que materializam a arte, em sua magnitude.

Não é de hoje que acendo meu cigarro e me ponho a escrever sobre qualquer sentimento. Anos e anos se passaram desde o primeiro verso de amor, desde a primeira centelha poética. Tenho ciência de que, dentre tudo que já escrevi, muito fora escrito sem nenhuma predisposição afetiva, sem nenhum vínculo com algo concreto ou alguém. Daí advém a minha preocupação com os porquês supracitados. São textos e mais textos de paixões jamais vividas, fictícias, como vislumbres de relações inconscientes, déjà-vus consumados em folhas e mais folhas de papel.

Mas, para quem? Não consigo pensar na possibilidade de escrever sequer um verso, somente por sentir vontade de escrevê-lo. E se o caso, dentre o acaso, for ela? E se tudo tiver, realmente, além do eterno remetente, uma destinatária? Para quem escrevo? Para quem dedico tudo aquilo que sinto?

As interrogações - princípio de tudo aquilo que escrevi até aqui - me levam a inúmeros panoramas. Sei que pode parecer um tanto estranho refletir a respeito de tais estímulos como algo físico e palpável, porém, não vejo mal algum em descer ao plano dos meros mortais, a minha fonte inspiração ininterrupta, minha Deusa.

Desde que me conheço por escritor, destino meus textos a mulheres, conhecidas por mim ou não. Há aquelas que compartilharam de um pedacinho de vida em conjunto; aquelas que compartilham; aquelas que foram retratadas à distância e, portanto, desconhecem o conteúdo direcionado às mesmas. E existem também aquelas às quais desconheço, ou aquela, partindo do pressuposto de que há de ser apenas uma.

Engraçado é pensar nisso não como possibilidade, mas como fato. E se a musa fosse real? E se a musa estacionasse o carro, e caminhasse em sua direção? E se a musa sorrisse e você perdess a noção da realidade? E se a musa olhasse fixamente em seus olhos, como se pudesse enxergar sua alma? E se a musa mastigasse um sanduíche sem pressa? Ou se banhasse na chuva de uma manhã qualquer? Qual? Qual seria sua reação? No quê você pensaria? O quê você diria? O que você faria, se a defrontasse, caso - no seu caso - o acaso também fosse musa?

Sim. Ela existe. Mesmo que, para mim, isso tenha sido esclarecido tardiamente. Não que seja tarde, muito pelo contrário, digo que só pude fazer as vezes de agraciado e contemplador de tal assimilação após muito tempo. Sim. Ela existe. E mexe demais com os meus sentidos, muito mais do que faz com meus sentimentos, à flor da pele.

Ela tem olhos tão penetrantes quanto abridores de rolhas de vinhos refinadíssimos. Sua boca imanta a minha, mesmo que em presságio. Nossos lábios jamais desfrutaram um beijo, nossos dias e noites ainda não vieram a ser, o que existe entre nós é um emaranhado de interrogações aos cuidados do destino.

Não que exista alguma certeza quanto a tudo que escrevi - ter sido ou não - escrito para ela. Sei apenas que muito do que pensei viver um dia ao seu lado, de uma forma ou de outra, se tornou crônica, poesia ou qualquer coisa parecida. Seria um erro da minha parte afirmar o contrário; sim, e como não? Já diziam os gregos, em sua mitologia, que uma musa não se contraria. Nenhuma delas, mesmo que para muitos, as mesmas ainda sejam, somente, desconhecidas.

Nietzsche tivera em Salomé a sua figura de musa. John Lennon em Yoko. Dante em Beatriz. Da Vinci em Monalisa e assim por diante, dentre tantas outras. Não procuro comparar, afinal, musas são musas e dentro desse mérito, são únicas e estabelecidas. Divindades em carne, mulheres, capazes de originar, partindo do efeito ocasionado em seus admiradores, criações em esferas diversas, em contextos diversos, para o bem daqueles que, assim como eu, partilham do gosto por algum fragmento artístico.

Não é de se espantar que as palavras aleatórias tenham chegado até aqui. Esse é o efeito ocasionado em mim. Não penso, somente; não sinto, apenas. Transbordo. Talvez seja esse o sentido de tudo o que vivifico em meus escritos. Ela acalma meu peito, me dá caneta e se faz papel. Próxima a todo instante, distante ao mesmo tempo. Ela sabe que existo, sabe que escrevo, sabe que a tenho, em meus pensamentos, assim como a tenho em meu peito. Ela sabe que esse sujeito, a perpetua, toda vez que inicia um punhado de aleatoriedades a seu respeito. É muito óbvio. Óbvio até demais.

Penso na experiência com muito cuidado e carinho. Não é habitual pensar em tais estímulos da forma como venho pensando ultimamente. Carne e osso? Como posso ser capaz de classificar a inspiração dessa maneira? Não sei, não faço a menor ideia. Uma flor não pode ser composta de carne e osso, com licença! Sim! Com devida licença poética, ora! Pode sim, e deve! Minha flor é de carne e osso. E tem olhos da cor da noite. Minha musa é a própria noite. Minha flor é visível ao escurecer. Minha escuridão é cada segundo distante. Meu amor é forte e tem fé. Outro texto, de amor obstante, para não fugir à regra daqueles que amam; verdadeiros amantes, perseverantes, pacientes e inspiradores, como não poderiam deixar de ser.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Nós, Que Nos Amamos

As gotas de chuva não causam muito espanto. Era de se esperar que caíssem, em algum momento. Talvez não tão de manhã, não tão facilmente, insistentemente, sobre os cabelos, escorrendo pela testa, encharcando a pele e o agasalho sobre os ombros. Guarda-chuva fechado, sorriso aberto. Não dá para explicar o que sente um coração quando, finalmente, encontra um bom motivo, algo que realmente faça sentido e justifique seus batimentos.

Os anos passados aglutinaram - com todo o cuidado possível - sentimentos nunca antes expostos; frases, versos, páginas e mais páginas de amor, jamais lidas; verdades inteiras, intensas, penetrantes, chocantes; estardalhaço completo e imutável; direto no queixo, nocaute impressionante e inesperado. Caminhos paralelamente distantes, paralelamente próximos, caminhos opostos e iguais, caminhos.

Um olhar à mesa do café, um simples e ligeiro flerte em silêncio; mãos dadas, junto aos passos pelas ruas de pedra; palavras, palavras, palavras; aromas que se alteram com ou sem adição de especiarias; bocas procuram distância, autocontrole, menos de vinte por cento; cinco sentidos afiadíssimos, como manda o figurino - encharcado pela chuva, teimosa que só. Agora, menos de cinco por cento, situação beirando o impossível, ou o possível, a depender do ponto de vista.

Querer, poder, dever. Onde é que tais resoluções se encaixam? Bem me quer; mal me quer; bem me quer, mas não pode; mal me quer, mas não deve; bem me quer, pode, mas não deve; mal me quer, não pode e não deve; bem me quer, pode e deve; bem me quer, pode e deve! Um abraço resolve tudo. Braços entrelaçados por instantes inigualáveis, incomparáveis, inacreditáveis. Porra, lindíssimo!

Para onde vão quando as pálpebras descansam? Onde é que se encontram? Onde é que dançam e dançam e dançam? O acaso, amigo, teria respostas para tão singela indagação? Para onde vão, quando perdem a razão? Onde, enfim, seus caminhos se cruzam? No apagar das luzes? Nos braços ternos do mundo mágico dos sonhos? No véu da noite? Em uma perspectiva completamente nova, que surge por detrás das montanhas cinzentas de um dia desprovido de sol? Interrogação;