terça-feira, 15 de outubro de 2013

Jogo da Vida



Passado exatamente um ano, mesmo dia, mesmo horário e diante do mesmo adversário, estava novamente ele, na marca do pênalti; Tibério - ou Tibé - camisa número dez da equipe do São Roque, clube do bairro de mesmo nome e que, há pelo menos duas décadas, não levantava a taça do pequeno campeonato entre bairros do subúrbio carioca.

Em situação semelhante, para não dizer igual à que vivera durante a disputa final do certame na temporada passada, estava novamente ele; ele e a marca; ele e a bola; ele, as traves e o seu carrasco, Carlos, o terror da Vila Treze.

Nascido e criado em São Roque, Tibé defendia a equipe desde menino, tendo passado por todas as categorias possíveis até alcançar o time principal. Era um símbolo, um ídolo, um garoto querido e idolatrado pelas ruas de sua comunidade. Seu pai, Reginaldo, um ex-jogador de pouco sucesso, acostumou seu filho à rotina dos treinos, levando-o para acompanhá-lo nos campos desde muito cedo. O garoto não reclamava, adorava assistir aos treinos do pai, um zagueiro troncudo, brigador, mas de inteligência tática limitada e pouca técnica. Tinha a seu favor o fato de que era dono de uma pequena mercearia e, por ventura, era o único patrocinador da equipe à qual defendia. Não que fosse esse o principal motivo de sua escalação como titular, mas influenciava um tanto, pois, sem contar os frutos das orações, toda ajuda era bem aceita, mesmo que viesse do bolso de um de seus jogadores.

Não se sabe, ao certo, se Deus, do alto de sua existência, é fã ou não de futebol, mas para aqueles que praticam o esporte, a resposta reside na ponta da língua. Sim, claro! O difícil é saber com exatidão para qual equipe o Todo Poderoso devota sua torcida. Os mais fanáticos costumam dizer que, de alguns anos para cá, o grande velho pegou birra do São Roque, outros, tão fanáticos quanto, vão além, ao dizer que não é birra do magnífico e sim, intervenção do demo. Não somente para o azar do time. Segundo as más línguas, reza a lenda de que os jogadores da Vila Treze fizeram um tal pacto com o tinhoso, o que serviria de explicação para a longa hegemonia nos campos de várzea.

Na primeira oportunidade, Tibé escolheu o canto certo, correu tranquilamente para a bola e bateu firme. Carlos se esticou todo e pegou. O goleiro, em questão de centésimos de segundos, pareceu dobrar a altura. Inacreditável ter alcançado aquela cobrança tão certeira. Mas alcançou. E dentro dos mesmos centésimos, o menino passou de herói a vilão. O sonho findou naquele instante, terrível, comentado à exaustão nos botecos de São Roque. Alguns apelaram para a pouca experiência, outros afirmaram displicência. Tibé perdeu o pênalti. São Roque perdeu o título. Fim de papo.

E agora estava ele, definitivamente defronte ao mesmo cenário, como um replay passado um ano. Ele e a bola; ele e a marca; ele, as traves e o seu carrasco, Carlos, o Terror da Vila Treze. Olho fixo na redonda, silêncio na torcida são-roquense. Era nítida a sensação de repeteco. Vai perder de novo¿ Suspense. Vai pegar, vai pegar, bradavam os adversários. Tinham motivo para não pensar o contrário. Era Tibé novamente contra Carlos, passado exatamente um ano, mesmo dia, mesmo horário, e diante do mesmo adversário.

Ele foi, deslocou pouco a pouco os seus pés e então correu. Silêncio. Carlos compenetrado. Pé e bola. Chute. Silêncio. Ninguém se arriscaria a quebrar a concentração, fosse de um, fosse de outro. Bola e ar. Curva. Jogada de efeito. Silêncio. Carlos decolou, voou, se esticou sem defeito e, contrariando o dito popular e sua vocação para endiabrado, se fez divino. Bola no canto, firme e, novamente, em suas mãos. Jogo da vida e a equipe da Vila Treze, campeã pelo sétimo ano consecutivo.